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PESQUISA ORIENTADA À MISSÃO E EM REDE DE COLABORAÇÃO: CAMINHOS PARA A RECONSTRUÇÃO DO FUTURO


*Evaldo Vilela

**Og de Souza

Um dos grandes desafios globais do nosso tempo é, seguramente aproximar a ciência, bem como as tecnologias, à sustentabilidade da vida social e econômica do País e, de maneira muito particular, junto aos povos tropicais. Das regiões tropicais partem ameaças concretas à agenda de transição climática, à segurança alimentar, à Paz e à estabilidade social e política das Nações, muito em função da degradação do tecido social, que gera inclusive correntes migratórias em direção às regiões mais prósperas.

A pesquisa orientada à missão é o caminho mais eficiente para desenvolver as teorias e as práticas científicas demandadas, ao mesmo tempo, para a busca de solução para as nossas necessidades presentes e futuras. Experiências passadas comprovam esta conclusão. Afinal, Pasteur no século 19, quando atendeu ao apelo dos viticultores franceses que viam sua produção de vinho, de repente, virar vinagre resolveu pesquisar cientificamente “por que” o vinho avinagrava. Seu conhecimento teórico indicava que os cristais opticamente ativos presentes no vinho avinagrado, mas ausentes no vinho sadio, proviam da ação de organismos vivos. Ao comprovar experimentalmente esta ideia, Pasteur estabeleceu os conceitos de assepsia, esterilização e pasteurização. Com isso, Pasteur não apenas resolveu o problema dos viticultores, descobrindo a fermentação e como controla-la, mas ainda criou a Microbiologia, como uma nova área do conhecimento humano. Produtos tão vitais para nossa economia e saúde, como o leite pasteurizado ou a vacina antirrábica, foram meras consequências dos conceitos teórico-práticos criados por Pasteur. E tudo isso surgiu de uma missão no desenvolvimento científico e tecnológico: resolver o problema dos vinhos avinagrados. Da mesma forma, a missão dada aos norte-americanos de ir à Lua, em 1957, depois dos russos terem ido ao espaço, mudou a trajetória da educação nos EUA (“Education Act”) 12 anos depois e mudou a maneira de pensar a inovação entre suas instituições e cidadãos. A ida à Lua só foi possível pelo desenvolvimento de conhecimento teórico novo, mas este desenvolvimento só ocorreu pela necessidade de se cumprir a missão lunar. A pesquisa orientada à missão tem esta característica: combina conhecimento teórico com necessidade prática e, como resultado, produz conhecimento novo e aplicação prática duradoura.

Também no Brasil, temos um bom exemplo do sucesso de se agregar à ciência uma missão. Alysson Paolinelli, nos anos de 1970, fomentou a pesquisa com a missão de produzir no cerrado os alimentos que importávamos das regiões temperadas do globo. A maneira como Paolinelli induziu tal missão revolucionou a trajetória do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Ao invés de meramente fomentar a tentativa-e-erro na produção agrícola, ele articulou uma forte rede de colaboração entre as universidades que produziam conhecimento novo nas ciências agrárias e jovens pesquisadores dispostos a transformar tal conhecimento teórico em aplicação prática. O ineditismo disso, à época, representou uma quebra de paradigma que foi a semente para a origem ao Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária. Como resultado, somos hoje líderes mundiais em produção agrícola e também líderes mundiais em ciência e tecnologia agrícola.

Alysson Paolinelli, hoje Presidente do Fórum do Futuro, agora nos conclama a um novo salto na produção de alimento nos trópicos. Urge agora que este modelo de pesquisa evolua em direção à sustentabilidade ambiental, social e de governança (ESG, na sigla em inglês). É inadiável inserir no debate global o potencial transformador do acervo de conhecimento e de tecnologias já desenvolvidas pela ciência nos trópicos, capaz de alavancar uma agenda ESG. Mas para isto, é necessário que a evolução do conhecimento e das tecnologias tropicais sejam aterrissados nas realidades sociais, econômicas e ambientais das regiões ou países menos favorecidos do Planeta. Só assim poderemos aprimorar ferramentas institucionais e estratégicas capazes de aproximar a pesquisa da solução de problemas específicos.

Este processo já foi iniciado, mas as demandas urgentes colocadas pelas pautas social e climática exigem maior assertividade. É vital que este debate inclua agências internacionais de fomento, hubs de reflexão da comunidade acadêmica, instâncias diplomáticas e de governo preocupadas com soluções estruturantes.

Mas como valorizar o protagonismo da visão científica num cenário tão complexo? Desafiador. A prática comum das instituições de Ciência raramente incentiva os pesquisadores a gerar resultados fora das linhas que definem o espaço reservado à produção do conhecimento. Entrementes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) vêm discutindo mecanismos de estímulo à pesquisa orientada a missão. O objetivo é inspirar em nosso meio um modelo mais robusto, articulado por agências fomentadoras como Bancos, a FAO e o IICA, e apoiado por grupos privados orientados pelo conceito ESG e interessados em entrega de soluções práticas e com bom lastro teórico, no menor prazo possível.

Importante pontuar que, em nenhum momento, esta proposta diminui ou desconsidera a Ciência investigativa pura. O que se faz é propor uma nova arquitetura, a partir da qual ficará mais fácil entender os propósitos e extrair políticas públicas e privadas consequentes.

No Brasil, temos uma ciência relativamente robusta para fazer isso. E essa base científica tem fundamento, liderança, pratica valores, mas precisa de fomento. Logo, as agências de fomento são os grandes instrumentos para avançarmos na aproximação Ciência e Sociedade, porque em última análise determinam para onde se quer ir. Com recursos financeiros calcados num arcabouço legal favorável à ciência, temos a capacidade de criar um movimento pelo desenvolvimento sustentável do País. Um movimento que se oriente por uma abordagem holística, agregando e fazendo interagir saberes indispensáveis à compreensão da complexidade da cena atual.

Nessa linha de raciocínio, é preciso reposicionar o olhar, destituí-lo de preconceitos. A solução para o enfrentamento dos nossos problemas virá do encontro dos dois universos da pesquisa científica:

a) A “Pesquisa por Curiosidade” voltada para o âmago da missão científica, que é o avanço do conhecimento. Esta não está atrelada a resultados, mas sim ao processo civilizatório fundamental;

b) A “Pesquisa por Necessidade”, esta sim vinculada a entregas específicas, metrificáveis diante dos objetivos pretendidos.

Trata-se e uma mudança de paradigma, que facilita o entendimento tanto do poder público como dos fundos mundiais de investimento. Ambos estão determinados a apoiar a solução de problemas concretos, como agendas da fome e da transição climática, mas encontram dificuldade em diferenciar projetos que visam o avanço do conhecimento humano daqueles desenhados para a busca de soluções práticas.

Na verdade, os dois universos da pesquisa podem estar intimamente relacionados, na medida em que se necessitam de novos conhecimentos para auxiliar o estado da arte. Ao planejar as etapas temporais das entregas é que se definem a convergência do que já se sabe e do que ainda é preciso conhecer por meio da pesquisa, num processo dinâmico, multidisciplinar e transparente inclusive para investidores, governos e sociedades.

A Pesquisa por Curiosidade caracteriza-se por ser uma investigação em nível de fronteira do conhecimento, não necessariamente atendendo a uma missão prática especifica. O fruto desta pesquisa é normalmente entendido como a publicação científica em revistas referenciadas. Não o acúmulo numérico de publicações, mas a publicação relevante, de qualidade.

Já na Pesquisa por Necessidade, o financiamento vem motivado por uma missão, podendo inclusive gerar patentes. Mas não se pode parar na publicação dos artigos ou no registro de patentes. É preciso fazer transbordar o conhecimento para a sociedade, para o mercado. Neste sentido, avanços notáveis têm acontecido no Brasil a partir do momento que o pesquisador tem sido motivado, convocado, para, com o investimento recebido, entregar contribuições valiosos para a sociedade. Tudo muda quando o foco não é apenas a patente ou a publicação, mas sim a solução do desafio, do problema. Solução prática cuja perenidade surge de um lastro teórico, tal como fez Pasteur, a missão lunar, e Paolinelli.

A quebra do arquétipo vigente pode produzir o sonhado estreitamento entre a Ciência, cada dia mais complexa, e uma sociedade organizada em torno de redes. Promover este entendimento é uma tarefa das agências de fomento à pesquisa, que podem pavimentar o caminho mais curto para que a sociedade priorize escolhas políticas comprometidas com o investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação.

Exemplo auspicioso, aqui no Brasil, são os “Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia”, que o CNPQ criou em 2008. Hoje, são apoiados 102 INCTs em várias áreas do conhecimento. São redes conectadas, muitas vezes abordando aspectos em nível da fronteira da ciência e que contribuem para a solução de desafios ligados ao mercado. Os INCTs, assim como outros programas em rede, como o PELD, ProAntar e Simbiosis, são pérolas cridas pelo CNPq para a Ciência brasileira e que demonstram que, se estabelecemos nortes, os avanços acontecem. São exemplos de “pesquisa orientada à missão” que atuam como redes globais.

O INCT Vacinas, por exemplo, entregará a vacina brasileira para a Covid-19 com os recursos liberados pelo FNDCT. É o que devemos fazer, garantir os recursos para ampliar a velocidade dos processos, galvanizar o conceito no plano internacional e, assim, chegar mais rápido à solução dos desafios. É o caso também da segurança alimentar, uma agenda extremamente urgente e crucial, já que mudanças estruturais na sociedade estão exigindo novos alimentos, mais saudáveis, produzidos em articulação com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). É imperioso, portanto, superar obstáculos colocados por modelos antigos. E juntos, Ciência, Agro e Sociedade têm o poder de acionar um futuro mais sustentável, mais inclusivo. E esse movimento começa, agora, pelo repensar dos paradigmas que orientam nossas instituições.

É um caminho único a trilhar. A necessidade de gerar prosperidade, traduzida em renda e qualidade de vida, é gigante. E a velocidade dos acontecimentos não nos oferece a opção da omissão.


*Evaldo Vilela, Reitor da UFV (2000), Presidente da FAPEMIG (2015), Presidente do CONFAP (2020), atual Presidente do CNPq

**Og de Souza, Professor Titular da UFV, Bolsista de Pesquisa do CNPq, Diretor da Agronomia, Biologia e Saúde do CNPq.


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