Há uma crise de abastecimento de água no Brasil e no Mundo, que se torna cada vez mais dramática ao se levar em conta que há mais de um bilhão de pessoas sem acesso a água potável segura e, ainda, mais de dois bilhões de pessoas sem acesso ao saneamento básico.
No Brasil, a opinião pública estava acostumada, historicamente, com as secas recorrentes do Nordeste e suas mazelas econômicas e sociais até que, nas duas últimas décadas, esse fenômeno climático vem se espraiando por diversas regiões do País, atingindo, inclusive, a população da Região Metropolitana de São Paulo, a maior da América Latina. Neste início do segundo semestre, a crise hídrica já se antecipa no funcionamento das hidroelétricas.
Trata-se do que, na técnica de cenários, se denomina de evento portador de futuro, ou seja, por ter em suas raízes fatores explicativos de natureza estrutural (mudanças climáticas, uso predatório da base dos recursos naturais, padrões de produção e de consumo como se água fosse um bem livre, etc.), a crise hídrica veio pra ficar e para se agravar, ano após ano, no Brasil e no Mundo.
Para se estimar a intensidade de água que é utilizada por unidade de cada produto, é preciso considerar o ciclo de vida e a cadeia de valor do produto. Ou seja, não basta que se estime a quantidade de água utilizada diretamente na sua produção, a qual pode ser muito pouco significativa.
Por exemplo, para se produzir um hambúrguer de carne bovina, a intensidade do uso direto de água é praticamente irrelevante. Mas, essa intensidade se agiganta quando consideramos a intensidade indireta de água (o DNA hídrico do produto) que está presente proporcionalmente em um hambúrguer, somando-se a água consumida na dessedentação do gado durante anos, a água utilizada no plantio e no cultivo dos grãos que irão alimentar o gado, a água necessária nos frigoríficos para o beneficiamento da carne, a água utilizada para gerar a energia elétrica, etc. É possível, portanto, se estimar a intensidade total de água que é utilizada, direta ou indiretamente, na cadeia produtiva de bens e serviços que um país consome, importa ou exporta, o que se denomina de Pegada Hídrica.
Trata-se de compreender a lógica circular da economia e seus desdobramentos. A economia passa a ser considerada como um conjunto orgânico de setores e regiões em um sistema de vasos comunicantes. Assim, um forte aumento nas exportações de grãos e carnes para a China pelas empresas localizadas em Goiás pode criar pressão antrópica do agronegócio sobre as águas dos afluentes da Bacia do Araguaia–Tocantins, bem como sobre as águas de outras bacias hidrográficas que abastecem aquelas empresas de insumos e bens de capital, direta e indiretamente.
A melhor compreensão do processo de globalização das águas irá permitir que governos, empresas e consumidores possam contextualizar melhor a sua responsabilidade social e suas políticas (alocativa, distributiva, regulatória, conservacionista) de sustentabilidade desse recurso ambiental. Como já dizia Guimarães Rosa: “A água de boa qualidade é como a saúde e a liberdade só tem valor quando acaba”.
Paulo R. Haddad é professor emérito da UFMG. Foi Ministro do Planejamento e da Fazenda no Governo Itamar Franco.
Texto originalmente publicado no jornal O Tempo em 22/07/2021
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